O feriadão de Páscoa evidenciou a gravidade da violência de gênero no Rio Grande do Sul: em cinco dias, foram 11 feminicídios. No ano de 2024, a média foi de um assassinato a cada cinco dias, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado, ou um a cada três dias conforme levantamento de movimentos populares.
Especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato afirmam que este cenário é reflexo da falta de políticas públicas e do baixo investimento. Entre as reivindicações que estão sendo feitas nas últimas semanas está o retorno da Secretaria de Políticas para as Mulheres, extinta há 10 anos pelo governo estadual, na gestão de José Ivo Sartori (MDB).

Thaís Pereira Siqueira, que integra a Campanha Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio e coordena o Observatório Lupa Feminista, defende o retorno da pasta especializada no tema. “É uma pauta muito importante, porque a secretaria é responsável por articular, por implementar e monitorar essas políticas, poder construir essa transversalidade com todas as secretarias.”
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A militante alerta, porém, que é preciso investimento. “Eu sempre digo também, tem que ter orçamento, tem que ter recurso humano, tem que ter autonomia. Não queremos uma secretaria só pra dizer que ela existe, mas a gente quer uma secretaria com essa potencialidade.”
Denúncias são levadas a organismo internacionais
A deputada Stela Farias (PT), que coordena a Força-Tarefa de Combate ao Feminicídio do Parlamento gaúcho, conta que os órgãos envolvidos na temática, em diálogo com movimentos populares, estão com ações para pressionar o governo do estado por mais políticas públicas. O grupo está, inclusive, apelando para organismos internacionais.
“Nós vamos à Corte Interamericana de Direitos Humanos levar denúncia sobre o que está acontecendo no estado do Rio Grande do Sul. E vamos também à ONU Mulheres, nos próximos dias, levar a mesma denúncia”, afirma.
Segundo Farias, a Força-Tarefa está convidando a ministra das Mulheres, Márcia Lopes, para vir ao Rio Grande do Sul. “Para ouvir o que todos temos a falar, para nos auxiliar, para ver de que forma a União, o governo federal pode nos auxiliar. Obviamente, para tentar também sensibilizar o governo do estado para esta política que precisa ser retomada com urgência para salvar vidas que estão morrendo diária e cotidianamente aqui no Rio Grande do Sul.”
Queda no orçamento
A Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa destaca a queda do orçamento para as políticas para mulheres ao longo dos anos. Há uma década, ava de R$ 19 milhões ao ano e hoje é de cerca de R$ 3 milhões. Presidenta da procuradoria, a deputada Bruna Rodrigues (PCdoB), explica que a situação motivou uma moção ao governador Eduardo Leite (ex-PSDB, hoje no PSD).
“Essa moção de recomendação, fruto de muita dedicação, de muita articulação da Casa, conta com 90% dos deputados assinando. Nós acreditamos que é preciso a retomada da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres porque não tem partido a defesa da vida”, afirma. Segundo ela, a procuradoria não conseguiu entregar o documento para o governador. “Ele ainda não aceitou nos receber e isso, na minha opinião, é um desrespeito com o Parlamento gaúcho.”
Rede Lilás “sucateada”
Rodrigues relata, entre os problemas que justificam a cobrança ao governo estadual, o abandono da Rede Lilás, que articula órgãos do governo e sociedade civil para a proteção de mulheres e meninas. “É estarrecedor ver uma rede sucateada como está, o ônibus da Rede Lilás está lá parado, estragado. O 0800 só funciona quando as duas funcionárias estão ali, quando elas estão em trabalho externo, ele também não existe, então se uma mulher liga aos finais de semana, feriados, que é onde mais acontece essas situações trágicas, ela também não tem atendimento.”
A deputada aponta ainda problemas como falta de delegacias especializadas no atendimento a mulheres vítimas de violência de gênero. “Quando as mulheres entram, por diversas vezes, estão com o agressor do lado, porque as delegacias também não têm um espaço de acolhimento, um espaço estruturado. Então nós estamos falando de um estado de desmonte.”
A Força-Tarefa de Combate ao Feminicídio reafirma o cenário de precarização. A deputada Stela Farias lembra que no início da Rede Lilás, entre 2011 e 2014, a articulação funcionava e houve queda nas violências. Hoje, segundo ela, falta diálogo por parte do governo Leite.
“Não tem política, não tem diálogo”
“Essas mortes, elas gritam. Elas são um grito de socorro. Elas estão nos mostrando que tem algo errado e que o governo está, eu diria assim ─ e tenho dito de forma dura, mas é verdade ─, conivente com esse tipo de tragédia, uma vez que tu olha e tu não encontra as políticas. ‘Ah, estão fazendo aqui e ali’. Não, não tem política, não tem articulação, não tem intersetorialidade, não tem conversa e diálogo com a sociedade, não tem escuta do que nós estamos falando, nós que somos debruçados sobre esses temas”, critica.
Como exemplo, cita audiência pública promovida no dia 24 de maio por três órgãos da Assembleia Legislativa: a Força-Tarefa, a Procuradoria da Mulher e a Frente Parlamentar dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres. “O estado não só não esteve presente, como orientou, porque nós recebemos informações de servidores que queriam ter vindo na audiência conosco, dialogar conosco e que foram, que não foi permitida a vinda.”
Discrepância de dados
Segundo dados do Observatório Lupa Feminista, que trabalha no monitoramento de casos de forma autônoma, o Rio Grande do Sul registrou 111 feminicídios em 2024. Já a Secretaria de Segurança Pública aponta 72. Siqueira, que coordena o observatório, exemplifica a diferença entre as metodologias, o que pode impactar no enfrentamento.
“Contextos de tráfico também escondem feminicídios, só que muitas vezes eles não são investigados, ou não são investigados com perspectiva de gênero, como a gente afirma essa necessidade. Quando se relaciona, se sabe que a mulher pode estar vinculada, por exemplo, ao crime, aquilo ali já vira tráfico e não se investiga com perspectiva de gênero. E muitos outros contextos também que não necessariamente têm um nome, nem feminicídio íntimo, feminicídio em contexto de tráfico, mas que podem esconder e podem estar mostrando ali feminicídios.”
O Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis da Polícia Civil afirma que não há subnotificação de feminicídios no estado. A delegada Tatiana Bastos diz que a metodologia segue a Lei do Feminicídio desde o início, em 2015.
“Cada país tem uma legislação de combate a feminicídio. Qual é a nossa metodologia? O que está na lei. O que é feminicídio? Primeiro que não é o homicídio de mulher. É o homicídio de mulher ou num contexto de violência doméstica, familiar e afetiva, que é o primeiro inciso, que é o que nós chamamos de feminicídio íntimo, ou com o menosprezo à condição de mulher.”
Ela destaca que os dados são divulgados apenas no ano seguinte, porque a investigação muitas vezes inicia como um crime comum e depois se descobre que foi feminicídio. Da mesma forma, pode iniciar como feminicídio e depois ser entendido que não.
Medidas e estímulo à denúncia
A delegada aponta novas medidas adotadas pela Segurança Pública, como pedido de medidas protetivas pela internet, que iniciou em abril deste ano, e tornozelamento eletrônico de agressores. “Isso com certeza vai reduzir, mas para reduzir, as mulheres também têm que denunciar mais. Então, o nosso grande trabalho hoje é estimular a denúncia, porque eu só posso reduzir esses índices se os casos chegam à delegacia de polícia.”
Ela destaca a necessidade de trabalhar o eixo da prevenção de forma integrada. “Só assim que a gente faz segurança pública, envolvendo múltiplos atores, seja de organizações governamentais constituídas, rede de assistência, de educação, da saúde, todos esses atores, política de assistência, política de moradia, política de geração de renda, política de trabalho. Porque ela tem que ter onde trabalhar, onde deixar os filhos, tem o auxílio-aluguel que é uma política de assistência, e várias políticas junto.”
Bastos reforça a necessidade de envolvimento de toda a sociedade para enfrentar o problema. “Não podemos tirar também a responsabilidade de todos que às vezes presenciam, têm conhecimento dessas violências e não incidem. Até porque dá pra todo mundo fazer uma denúncia sem se identificar.”
O que diz o governo do estado
Em nota, o governo do Rio Grande do Sul disse reafirmar “seu compromisso com a proteção e os direitos das mulheres, com políticas públicas efetivas e investimentos robustos e transversais em diversas áreas”. Nega que o orçamento teria sido reduzido para cerca de R$ 3 milhões, argumentando que o dado “desconsidera ações relevantes executadas em diferentes frentes do governo”.
Entre as principais iniciativas, destaca o programa SER Mulher, com mais de R$ 20 milhões anuais em recursos; o monitoramento do agressor por tornozeleira eletrônica; o aumento das Patrulhas Maria da Penha; a capacitação profissional de mulheres em situação de vulnerabilidade; e a ampliação dos Centros de Referência. Além de investimentos em saúde com ampliação de estrutura hospitalar.
Afirma que a estrutura atual do governo já garante a execução de políticas específicas, através do Departamento de Políticas para as Mulheres e o envolvimento de diversas secretarias. Encerra dizendo que “a proposta de recriação de uma secretaria dedicada é legítima e será considerada com o devido respeito”, mas pontua que “ausência dessa estrutura não significa ausência de políticas públicas”.
