Durante 18 anos, a Bolívia gozou do prestígio de ter uma das economias mais estáveis da América Latina. O resultado conhecido como “milagre boliviano” foi alcançado de 2006 a 2019 com o boom das commodities que beneficiou as exportações e aqueceu a economia boliviana.
Esse bom desempenho se manteve até 2024, com inflação e câmbio controlados mesmo com a pandemia. Mas nos últimos meses, os indicadores pioraram e o país começa a apresentar sinais de uma crise que se aproxima em um contexto eleitoral.
As causas dessa crise têm diferentes explicações, mas a principal é a falta de dólares. O país que conseguiu balança comercial favorável nos últimos 15 anos, agora enfrenta déficits que levaram o governo boliviano a queimar seu estoque de dólares. A Bolívia tem hoje US$ 2,6 bilhões (R$ 16 bi) em reservas, sendo a maior parte em ouro. Esse é um dos níveis mais baixos desde 2014, quando o país acumulava US$ 15 bilhões (R$ 96 bi).
Uma das razões é a queda nas exportações de gás natural. O Instituto Nacional de Estatísticas da Bolívia (INE) diz que o produto era responsável por 53% das exportações bolivianas em 2013, mas 10 anos depois, ou a responder por apenas 18,8%, porque um dos principais compradores, a Argentina, deixou de importar gás natural do país depois que os argentinos começaram a extrair o produto na reserva de Vaca Muerta.
Buenos Aires tinha acordo de 20 anos para a compra do gás boliviano. Esse contrato venceu em 2024 e a Casa Rosada decidiu investir na sua produção própria, o que fez cair a entrada de dólares. La Paz agora exporta o seu principal produto só para o Brasil.
Esse problema respingou nos principais programas do governo que garantiam preços íveis aos combustíveis. O país chegou a produzir 54% da gasolina que consumia, mas os poços de petróleo se esgotaram e, hoje, a Bolívia produz apenas 15% do diesel e 30% da gasolina que consome e precisa importar da Argentina, Paraguai, Peru e Chile. Uma parte importante dos combustíveis era subsidiada pelo governo para evitar uma variação de preços muito brusca.
Esses desequilíbrios levaram a um segundo problema para a população: o aumento nos preços. O país manteve nos últimos 20 anos uma das inflações mais baixas da América Latina. Para se ter ideia, o país chegou a ter, em novembro de 2020, uma variação negativa dos preços de 1,1% no acumulado em 12 meses, ou seja, os preços chegaram a cair na Bolívia. Isso tudo com uma taxa de juros baixa, de apenas 4%.
O país chegou em abril a uma inflação acumulada de 15% depois de 12 meses de altas ininterruptas. Todo esse cenário levou a uma série de protestos no país pedindo medidas mais enérgicas do governo de Luís Arce.
Para o economista Martin Moreira, a Bolívia também é pressionada por outros países e organizações financeiras internacionais por sua política de estatizações e subsídios, principalmente os Estados Unidos. Ele afirma que isso, somado a uma disputa política interna na Bolívia, prejudica e sufoca uma economia que é fragilizada por uma industrialização muito incipiente.
“O câmbio está se ajustando. Há condições para a estabilidade. Tudo que está acontecendo na política também leva a uma incerteza ainda maior, porque há interesses de fora pelos recursos naturais e que geram essa instabilidade. Os Estados Unidos têm interesse no lítio boliviano, mas enfrenta uma barreira importante, que é uma política de nacionalização e soberania sobre os recursos naturais que começou com Evo e Luis Arce deu continuidade”, disse ao Brasil de Fato.
Ele faz referência às mais de 21 milhões de toneladas em reservas de lítio que a Bolívia têm. O chamado “ouro branco” é um componente fundamental para a produção de baterias para carros elétricos. Esse tem sido o principal campo de disputa entre EUA e China no mercado internacional. Em 2019, o governo boliviano planejava ter 14 plantas industriais de extração de lítio já em 2025. No entanto, hoje só há uma planta que extrai 2 mil toneladas por ano, um valor muito abaixo dos 150 mil projetados.
A nacionalização da exploração do lítio foi determinada em 2008, o que garantiu que o país recebesse a maior parte dos recursos gerados pelo mineral, mesmo com eventuais concessões para empresas estrangeiras. Analistas entendem que a falta de capacidade de extração de lítio tem sido um fator que prejudica a estabilidade econômica do país.
Moreira afirma que outro grande problema são os bloqueios aos créditos que o governo pretendia tomar. A Assembleia Plurinacional boliviana proibiu que Luís Arce contraísse empréstimos de organismos internacionais para financiar obras de infraestrutura. O presidente se orgulhava até então de não pedir empréstimos e muito menos depender do Fundo Monetário Internacional para executar sua política econômica.
Esses empréstimos foram vetados no Legislativo por congressistas da oposição e por apoiadores de Evo que são contrários à gestão de Luis Arce. Ao todo, eram 16 projetos para empréstimos que foram bloqueados pelo Legislativo.
O governo também adotou outra estratégia para tentar manter os dólares no país. O mandatário em conjunto com o Banco Central da Bolívia limitou transações em dólares por meio de crédito ou débito e o saque de moedas estrangeiras. Mas, além de não conseguir reter os dólares no país, levou ao surgimento de um mercado paralelo que comercializa o dólar a um valor mais de 60% maior que a cotação oficial.
Tentativas de Arce
Para tentar contornar a crise econômica que vai se aproximando da Bolívia, o presidente e ex-ministro da Economia, Luis Arce, anunciou no final de maio 11 medidas para aumentar a reserva de dólares e melhorar a distribuição de combustíveis. Uma é o aumento para US$ 50 mil (R$ 281 mil) da entrada de moedas estrangeiras por pessoa no país. O limite anterior era de US$ 10 mil (R$ 53 mil).
Outra medida também foi o incentivo para que pessoas com até 100 mil bolivianos (R$ 81,5 mil) recebam juros anuais de 2% para manter o dinheiro no banco. O governo também garantiu que a demanda interna por combustíveis será 100% atendida a partir da semana que vem.
As medidas são emergenciais, mas o governo de Arce adotou desde o início da sua gestão uma política de “industrialização por substituição de importações”, para justamente tornar a entrada de dólares mais sustentável e menos dependente de uma alta nos preços das commodities. Para isso, foram criadas novas empresas estatais, como uma siderúrgica, uma indústria alimentícia e uma empresa farmacêutica.
Em meio a uma disputa política com o ex-presidente Evo Morales pela disputa na liderança da esquerda boliviana, a medida foi criticada pelo líder cocalero por “destruir a economia”. De maneira surpreendente, o próprio Morales, que foi o principal responsável pelo programa de reestatização de todas as empresas privatizadas na década de 1990, afirmou que ele fecharia estatais que “não geram lucros nem beneficiam o povo”.
“Estamos confiantes de que a industrialização, com substituição de importações, é a solução estrutural para os problemas da economia nacional, porque não só nos permitirá diversificar as fontes de renda do país, mas também fortalecerá nossa soberania econômica ao reduzir a dependência de produtos estrangeiros”, defendeu Arce.
Moreira concorda que é necessário uma mudança estrutural, mas afirma que isso leva tempo e, para controlar a inflação e os problemas atuais, é preciso medidas imediatas.
“Precisamos de ter divisas e para isso é claro que é importante uma transformação no aparato produtivo: mineração, gás e agroindústria, mas para isso precisamos mudar muitas regulamentações como a lei de mineração e a lei de hidrocarbonetos. Isso leva tempo, e no momento precisamos de medidas que não mudem o modelo econômico, mas que ajustem alguns pontos importantes, como ampliação dos créditos, e incentivar os investimentos no país”, afirmou.
Programas de sucesso
Parte das conquistas do governo boliviano se deram durante o governo de Evo Morales, com o controle de preços e abastecimento do mercado interno por meio da Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa) e o Fundo Rotativo de Segurança Alimentar. Esses programas tinham como objetivo importar alimentos e estimular a produção de pequenos agricultores que não trabalhavam com produtos para a exportação. O governo distribuía esses alimentos nos mercados públicos para pressionar por redução dos preços.
Criada em 2007, a Emapa é um órgão estatal que tinha como objetivo garantir a “segurança alimentar” da Bolívia. Ao comprar produtos de agricultores familiares, o Estado conseguia manter a demanda e incentivar de maneira ccontínuaa produção de alimentos que não seriam vendidos a outros países.