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Agroecologia é ferramenta de resistência dos povos indígenas do Paraná frente à perda de terras e ameaças do agronegócio 

Os Avá-Guarani têm um conhecimento profundo sobre as plantas e a agricultura

Confinamento e luta pela sobrevivência em seu próprio território. Essa é a realidade das comunidades Avá-Guarani que vivem na região oeste do Paraná, próximas à Foz do Iguaçu e à tríplice fronteira Argentina-Brasil-Paraguai, num cenário de tragédia para um povo cujo território é essencial não só para a sobrevivência física, mas também cultural e espiritual.

Nesta luta que já leva séculos, é a agroecologia que vem contribuindo para preservar sua cultura e modo de vida. Lideranças dessas e outras comunidades indígenas do Paraná participaram do primeiro encontro preparatório para o Encontro Nacional de Agroecologia, que acontecerá no ano que vem em Foz do Iguaçu. Juntamente com outras importantes referências deste campo, destacaram a importância da agroecologia para os indígenas em sua  luta pela terra.

De acordo com o Censo de 2022, há aproximadamente 35 mil indígenas no Paraná, de três povos: Kaingang, Xetá e Guarani, este último que tem a maior população. Os Avá-Guarani habitam a região oeste do Paraná há pelo menos 4 mil anos, mas a expansão ilimitada do agronegócio e a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu transformaram seu território em área de monocultura e conflito e deixaram marcas profundas na vida de suas comunidades. Hoje, apesar de viverem em uma região que se apresenta como “celeiro do mundo” e “polo de energia renovável”, as comunidades Avá-Guarani enfrentam fome, contaminação por agrotóxicos, perda de biodiversidade e a constante ameaça de despejo. 

Segundo o relatório Impactos da Produção de Commodities Agrícolas às Comunidades Avá Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, publicado em 2023 pela Comissão Guarani Yvyrupa, os Avá-Guarani do Oeste do Paraná vivem, atualmente, em 24 aldeias, ou “tekoha”. Tekoha é mais do que um lugar físico: é onde podem viver de acordo com seu modo de ser, “nhandereko”, que está ligado à terra de forma espiritual e social. Essas aldeias compõem a Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, que abrange cerca de 24 mil hectares entre os municípios de Guaíra (PR) e Terra Roxa (PR), e a TI Okoy Jacutinga, localizada às margens do rio Paraná e de seus afluentes. 

Osmarina de Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, descreve o impacto da construção de Itaipu sobre os Avá Guarani. “A construção resultou na perda de 19 tekoha no Brasil e 36 no Paraguai, sem compensação adequada. A Itaipu também contribuiu para o apagamento da história dos Avá-Guarani, negando sua presença histórica na região. Atualmente, os Guarani estão retomando terras e enfrentando condições precárias, como falta de escolas em sua língua, água, luz e moradia”, conta. 

Em março deste ano, a Itaipu assinou o compromisso para a compra de 3 mil hectares para os Avá-Guarani. Para Celso Japoty Alves, liderança do Tekoha Ocoy (São Miguel do Iguaçu / PR) e da Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai, em Guaíra (PR), “a negociação desses 3 mil hectares levou mais de 40 anos de luta, mas não é suficiente para reparar a totalidade do território alagado por Itaipu”. 

Durante a Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa para a da compra das terras pela Itaipu, Celso Alves disse que sonha com a demarcação e devolução de todo o território Guarani, e espera que futuros acordos não sejam feitos em cima do sangue do povo Avá-Guarani. “Não foram apenas 3 mil hectares do nosso território que Itaipu alagou. Então, hoje, a da compra das terras não é uma doação, é uma reparação mínima”, afirmou.

A cacica do Tekoha Nhemboete, Nazane Martins, explica o motivo: “Território indígena, para o nosso povo Avá Guarani, é sinônimo de garantia da nossa sobrevivência física, cultural e espiritual”. 

Além de perder uma área significativa com a construção da usina, outra grande parte do território foi desmatada e está ocupada por monoculturas de commodities agrícolas, principalmente soja e milho. Atualmente, mais de 60% da área da TI Tekoha Guasu Guavirá foi apropriada pelo agronegócio, e pouco mais de 1% está ocupada por roças e moradias indígenas, tornando um desafio cotidiano a produção de alimentos saudáveis para sua população. Nas cidades de Guaíra e Terra Roxa, onde ficam as aldeias, cerca de 80% da área é ocupada por lavouras. E as aldeias Avá-Guarani ficam, literalmente, cercadas por essas monoculturas. 

Ainda segundo o relatório produzido pela Comissão Guarani Yvyrupa, a situação de viver “confinado” entre as plantações é a raiz de muitos problemas graves: devastação ambiental, ameaças às plantas e sementes tradicionais (agrobiodiversidade), uso intenso de agrotóxicos e agravamento da fome. Conforme o relatório, grandes lavouras usam muitos agrotóxicos, e como as aldeias ficam coladas às plantações, o veneno pulverizado (a “deriva”) atinge as casas e as pessoas, que estão a poucos metros de distância. Os agrotóxicos usados nas lavouras também contaminam a água, e as queixas são frequentes: dores de estômago, dores de cabeça, diarreia e vômito. Estudos já encontraram vários tipos de pesticidas na água potável da região, muitos deles proibidos em outros países por serem perigosos e por estarem relacionados a doenças graves, como o câncer. 

Os Avá-Guarani têm um conhecimento profundo sobre as plantas e a agricultura. Mesmo com pouco espaço (apenas 1,13% da área da TI é usada para casas e roças), eles cultivam muitas variedades de milho, feijão, mandioca e outros alimentos. Para eles, a agroecologia é justamente plantar essa variedade nos pequenos espaços que têm.

A cacica Nazane Martins conta que com o pouco espaço que possuem hoje, estão preservando sua cultura e modo de vida. “Estamos fazendo plantações de roçado, horta, plantando árvores nativas e frutíferas e garantindo alimentação sustentável para o nosso povo. Isso para nós é a agroecologia”, diz ela.

Ronaldo Martines Esquivel, liderança de uma Tekoha Guarani, conta que a agroecologia representa muito para a sua comunidade. “A gente trabalha muito com a preservação da natureza, hortaliças e hortas comunitárias. A gente não usa nenhum tipo de agrotóxico, preservamos a nossa cultura, a nossa língua, o canto, a reza. Então a agroecologia, para nós, é o bem viver, um trabalho coletivo que dia a dia fortalece a nossa luta”, diz ele.

Um pouco mais distante, no litoral do Paraná, estão comunidades Guarani Mbya. Jessica Kerexu, da Comunidade Kuaray Haxa, sintetiza o significado que a agroecologia tem para o seu povo. “Para o nosso povo Guarani, a agroecologia é o nosso modo de vida, o nosso nhandereko, a nossa alimentação milenar, porque tudo é interligado. O modo que a gente cuida do nosso alimento, que a gente cultiva a semente, que a gente protege, isso tudo para a gente é agroecologia. Para a gente, a semente só vai ter vida se ela for cultivada da maneira certa. E o veneno, infelizmente, vem prejudicando esse nosso cultivo milenar”, explica Jessica.

Além de todas essas questões, os Guarani também enfrentam dificuldades com a documentação, especialmente os Avá-Guarani, o que impede o o a serviços básicos, como educação, saúde e benefícios sociais. Segundo Osmarina de Oliveira, do Cimi, essa realidade foi apresentada para o Conselho Nacional de Direitos Humanos e para o Comitê Brasileiro de Defensores de Direitos Humanos quando estiveram, no final de semana ado, nas aldeias.

“O que a gente percebe é uma violação gigantesca dos direitos humanos. Um exemplo é como o estado dificulta a questão da construção de escolas nos territórios, o que é necessário para que as crianças estudem na sua língua tradicional, com professores Guarani. A situação das escolas é realmente precária, às vezes, até tem as carteiras e as cadeiras, mas não tem energia elétrica e nem mesmo uma sala de aula propriamente. As escolinhas são construídas com restos de madeira de construção pegos no lixão. A gente percebe que, principalmente em Guaíra e Terra Roxa, dentre outras retomadas, não existe um posto de saúde que possa prestar um bom atendimento às famílias. Como uma mulher vai fazer um exame ginecológico se nem existe um espaço para se consultar? São vários tipos de violações que são cometidas contra esse povo, que está lutando para se manter no seu território, no oeste do Paraná”, denuncia.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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