Você já ouviu falar sobre transição energética? O tema está em alta e envolve questões que vão desde o desenvolvimento econômico até o cuidado com o meio ambiente. O estado do Ceará, inclusive, demonstra um enorme potencial no que se refere às energias renováveis e à transformação do setor energético. Mas, afinal, o que é de fato essa transição energética? Quais são os desafios, impactos, riscos e benefícios desse processo? E o que a população precisa observar e debater sobre o tema?
Para responder essas e outras perguntas, o Brasil de Fato conversou com Andréa Camurça, assistente social, coordenadora de Incidência Política do Instituto Terramar e defensora dos direitos humanos, que atualmente também atua na divulgação do relatório internacional “Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde no Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas” — documento que denuncia violações contra comunidades tradicionais associadas à expansão de empreendimentos renováveis nesses países.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato: O que é essa transição e qual é o seu objetivo?
Andréa Camurça: Antes de tudo, é importante se perguntar: ‘de qual transição energética estamos falando?’, porque esse termo está sendo usado de formas bem diferentes. Existem as transições energéticas promovidas pelos governos, pelas grandes corporações e pelos organismos multilaterais, que a gente tem chamado de ‘transição energética institucionalizada’. Essas transições, muitas vezes, seguem a lógica do mercado, do lucro, com foco apenas nas tecnologias e nos investimentos.
Mas também existem outras propostas que vêm dos movimentos sociais, das organizações da sociedade civil e dos povos e comunidades tradicionais. Essa proposta de transição energética coloca as pessoas, a vida, a justiça social, ambiental e climática no centro. Então, quando se ouve falar em transição energética, está se falando de um processo de mudança da matriz energética, ou seja, da forma como nós produzimos, distribuímos e consumimos energia.
A ideia, em termos gerais, é sair do modelo baseado nos combustíveis fósseis, porque nós já estamos em uma emergência climática. Nós temos sentido isso diariamente: basta sair na rua para perceber que as temperaturas aumentaram muito. Estamos vivendo uma crise que não é apenas climática, mas também ecológica; é uma crise do capital, e nós precisamos mudar a forma como vivemos nessa sociedade.
Uma das estratégias é garantir essa mudança: deixar para trás os combustíveis fósseis e usar a produção de energia a partir de fontes renováveis.
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Qual é a realidade dessa transição no Brasil, mas, principalmente, no Ceará?
Aqui no Brasil, já temos uma matriz elétrica com predominância de fontes renováveis, mas há uma pressão para que a gente produza ainda mais energia a partir dessas fontes. A realidade da transição energética no Brasil e no Ceará tem sido marcada por profundas contradições e paradoxos.
Apesar do avanço das fontes renováveis, como solar e eólica, o modelo continua sendo concentrador, predatório e excludente, repetindo a lógica extrativista que se aplica aos combustíveis fósseis. O cenário no Ceará é de uma ampla expansão das renováveis.
Temos uma grande expansão das eólicas em terra e, agora, com a previsão de instalação no mar, principalmente sobre áreas de pesca artesanal, além da produção de hidrogênio verde. Há uma grande disputa entre as grandes corporações, os estados e os governos para definir quem vai iniciar a produção de hidrogênio verde. Esse é um dos cenários, mas existem várias questões importantes. É fundamental entender que essa produção de energia renovável está sendo pensada para o processo de descarbonização da Europa. E nós temos que refletir: ‘às custas de quê?’.
Essa transição energética pode trazer riscos ou impactos para a população e o meio ambiente?
Nós enxergamos vários riscos diante da forma atual como está sendo feita a transição energética. É importante frisar que ela é necessária, mas o modo como pensamos as energias renováveis e como elas têm sido implantadas gera impactos e coloca em risco, por exemplo, povos e comunidades tradicionais.
Quais são os desafios enfrentados para a transição energética no estado do Ceará?
Um dos principais desafios que percebemos na transição energética no Ceará é a forma como ela tem sido conduzida: sem garantir a participação das populações diretamente afetadas, principalmente as comunidades tradicionais.
Falta a Consulta Livre, Prévia e Informada, que é garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um exemplo é o caso da planta de hidrogênio verde prevista para o Complexo Portuário do Pecém. Existem povos indígenas na região e, mesmo tendo sido garantido nas normativas do Conselho Estadual do Meio Ambiente que essas comunidades deveriam ser consultadas, elas não foram.
Então, é muito desafiador pensar uma transição energética no Ceará que mantenha a mesma forma como ocorreu no início da instalação das primeiras eólicas, com violações de direitos humanos e diversos impactos.
O que também observamos como desafio é justamente isso: precisamos nos perguntar ‘essa transição é para quem?’, ‘essa energia é para quem e como?’. É preciso refletir sobre a produção descentralizada de energia, pensar na proteção desses ecossistemas e aprofundar essa discussão, especialmente com essas comunidades.
O que é o relatório internacional intitulado: Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde no Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas?
Esse relatório foi publicado no final de abril por uma organização não governamental sueca chamada Swedwatch, que traz uma contribuição muito importante e bastante urgente para o debate sobre a transição energética global.
O relatório mostra que, embora a substituição das fontes fósseis por energias renováveis seja essencial para o enfrentamento da crise climática, isso não pode ser feito a qualquer custo, nem repetindo os erros históricos que já conhecemos.
Foi feito um estudo em quatro países — Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas — onde projetos de energias renováveis, como eólicas, solares e hidrelétricas, estão sendo implantados em regiões de alta vulnerabilidade social e ambiental.
O relatório revela que, nesses contextos, os defensores dos direitos humanos e ambientais têm sido criminalizados, perseguidos e até assassinados por denunciarem violações ou exigirem que seus direitos sejam respeitados, como o direito de permanecer em seus territórios.
Esse relatório é muito importante porque nos permite conhecer e perceber o que as comunidades estão vivendo.
Um dos casos apresentados no relatório é o da comunidade quilombola do Cumbe, na cidade de Aracati, no Ceará, impactada pelas eólicas. Explica um pouco sobre esse caso e sobre o acompanhamento dele para o relatório.
No relatório, esse é o caso do Brasil. Para nós, é um caso emblemático: a comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati. É uma comunidade tradicional, formada hoje por 110 famílias, que vivem da pesca artesanal, da mariscagem, do artesanato, do turismo comunitário e que mantêm uma relação muito forte e ancestral com os ecossistemas locais — principalmente com o manguezal, o rio Jaguaribe e o mar.
Desde a década de 1990, a comunidade já sofria grande pressão e impactos ambientais, principalmente da carcinicultura, que é a criação de camarão, e da especulação imobiliária.
Em 2008, essa situação se agravou com a chegada da usina eólica ‘Bons Ventos’, hoje sob o domínio da FL. O empreendimento foi instalado sem a consulta prévia à comunidade, que foi simplesmente surpreendida.

O que vemos no caso do Cumbe é um grave exemplo de injustiça ambiental: a usina foi construída em uma área extremamente sensível, sobre dunas, lagoas e sítios arqueológicos, causando destruição de ecossistemas e perda de biodiversidade.
Houve toda uma alteração no modo de vida da comunidade, com impactos sociais, culturais e espirituais. A relação dessa comunidade com seus ancestrais, por exemplo, foi profundamente afetada: o cemitério hoje é privatizado e, para visitá-lo, é preciso pedir permissão. Para ir à praia, é necessário ar por um portão e solicitar autorização.
Houve, portanto, toda uma mudança e alteração na vida da comunidade quilombola do Cumbe com a chegada desse empreendimento.
A gente sempre reforça: uma transição energética justa não é só sobre mudar a matriz energética, mas também sobre transformar as relações de poder, de território e garantir justiça — justiça climática.
Quando uma comunidade como o Cumbe, que já contribui para a proteção do meio ambiente, é ignorada, violentada e ainda não se beneficia de nada da energia gerada em seu território, algo está muito errado. Precisamos falar sobre isso.
A comunidade hoje continua lutando, com grande resistência, enfrentamento e demandas direcionadas à empresa e ao Estado. Ela também luta, inclusive, pela titulação do seu território quilombola.
O relatório está disponível para a população?
O relatório pode ser ado em link disponibilizado no perfil do nosso Instagram @instituto.terramar.ce, assim como no próprio site da Swedwatch: swedwatch.org.
Você pode conferir todas as nossas entrevistas em nossa página no Spotify ou no nosso perfil no Anchor.
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